Leon Kossovitch

Crítico de Arte, Filósofo; Graduado em Engenharia Civil pela atual Universidade de Uberaba; Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, obtendo os graus de Mestre e Doutor; Professor de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. 

Coletânea dos 15 Anos de Carreira

No horizonte da moderna pintura brasileira, as cidades e figuras de geometria cubo-expressionista surgem em Luiz Bhittencourt como uma estilização apoiada em linhas. Ulteriormente espessada por gestos enfáticos, a pintura passa a encurtar a distância do espectador ao suporte, substituindo o desprendimento da visão longínqua pela comoção da propínqua, engastada na massa de tintas que ritmos e repetições percutem: eliminando as linhas contornantes dos inícios decorativos, a pintura torna-se operação de manchas cuja densidade evidencia-se apta para modelar conceitos.

Anjos, Bento, Elementos da Natureza, Vaso de Flores, Consagrados são séries que, embora relacionadas à iconografia anterior do artista, modificam o exercício visual, não por recorrerem a variações lineares, mas por valorizarem as iterações que se lançam no suporte, horror vacui exemplificado por anjos e cruzes que nele proliferam. Essa plenitude não se atém às figuras, pois o que as separa não é a indistinção de um fundo: ativado pela espessura das tintas, este deixa de funcionar como o descontínuo em que a visão repousa e, operante a matéria, acabam os feriados visuais.

É consequência disso a homogeneidade matérica no molar das pinturas recentes conferir-lhes a vibração que as liga à economia geral das cores. Suprimindo a não menos matérica distinção entre figura e fundo, a saturação intensifica ainda mais o efeito da pintura atual, enquanto situa no passado as séries Faces e Bocas, Religiosa, Vilas e Favelas, Criança, Transição, Metrópoles, Inspiração na Iconografia, Amigos, tudo o que, enfim, entre 1998 e 2009 se inclui nas uniformes estilizações lineares e nas heterogêneas regiões cromáticas.

Embora transcenda o religioso, Luiz Bhittencourt a ele muito se dedica na pintura, tanto na realizada com acrílico quanto na materializada com óleo, o qual sobressai nas pinceladas geradoras de linhas espessas e mais ainda, nas concentradas em manchas saturadas que suportes diversos, do papel à tela, acolhem. Nessa manifestação do religioso, as figuras ora dispõem segundo traçado prévio, ora se agrupam em ações e poses evidenciadoras a posteriori da composição, em que prevalecem, no suporte, recortes de áreas, repetições de figuras, ritmos de apresentação.

A composição explicita a energia dos agenciamentos; também, a invenção ganha alento com o que o artista chama “inspiração”, à qual atribui uma figuração estendida do grau zero dos Elementos da Natureza, pintura decerto abstrata, cujas figuras são, já no título, os átomos, invisíveis que se manifestam pictoricamente, à dos Consagrados, que expõem os devotados ao próximo, não aos santos de roca hagiográfica: recusando o rol da tipologia convencional, o artista troca tais patronos de onomástica por benfeitores, operem eles, ou não, em Flos sanctorum ou Legenda aurea.

A inspiração inventa figuração que se desvia das convenções iconográficas, explicitando a superação, pelo pintor, de tudo quanto confronte o seu arbítrio; nem indiferente, nem arrogante, este é consequente com as escolhas feitas à luz da Providência, que lhe sustém a leveza mundanal frente ao rigor do rito. Por isso, as “Santas Ceias” da série Consagrados podem intercambiar as pessoas da Bíblia e da vida, modificando-lhes até o número, no que diversamente alheiam o modelo, como se vê em “Jesus com as Marias”, “Santa Ceia dos Excluídos” ou “Santa Ceia dos Reis”.

Na invenção inspirada, anulam-se os lugares regulamentados do achamento; imprescrita, essa invenção não afronta, contudo, a religiosidade pois religa os homens e Deus sem o aperto da regra, a qual tampouco pode ordenar a própria pintura, preparada em Luiz Bhittencourt pela oração e a música sacra. Ora pontual, ora intervalar, a inspiração tem por desiguais os tempos das séries, flutuantes como a música e a prece que as trazem à luz: é sua a pintura que separa as mesclas, como a do bem e do mal, alegórica na série Anjos, já combatentes, antes da Bíblia, no Avesta zoroastriano.

A dimensão elocucional da pintura rebate-se na ação do pintor. A execução preste das séries recentes, conquanto indiciada na anterior a 2010, evidencia, na concentração dos gestos breves, o impedimento de hierarquização da figura sobre o fundo, que, homogeneizando as massas, evita a cenarização da pintura; mas, ainda que não encene a narração bíblica, Luiz Bhittencourt não busca reduzi-la ao símbolo. Não representando historicamente, a pintura, por se afastar também da direção simbólico-abstrata, é presentificadora, pois suas figuras e atos não seguem, com as trocas entre a Bíblia e a vida, sulcos batidos.

Sumária, a pintura descarta, a um tempo, a representação e a simbolização: lançando-se, com isso, no sentido, louvar o sagrado porquanto mostra eficaz a busca espiritual e a ajuda ao próximo. Essa pragmática, inquiridora na figuração e no título, cultiva o imprevisto, já na mistura dos actantes bíblicos e dos agentes vivos, dimensão que reordena as noções correntes da pintura, como a de invenção, tornada ao mesmo tempo achamento com lugares e encontro com o imprescrito da fantasia. Exemplificam-no as recentes “Inquisição” e “Séculos de Sangue Por Deus ou Pela Igreja?” da série Consagrados.

Por não se aferrar à iconografia estabelecida, o pintor aparta a memória da invenção, ambas ligadas a lugares. Com isso, a história pode flutuar além da literalidade do ensinamento, com o qual São Gregório Magno defende a imagem, nele, “Bíblia dos iletrados”; é a fantasia que opera quando reúne o diverso longe da encenação prescrita. Não cai, porém, sob os golpes dos iconoclastas de Constantinopla, atualmente entre os meados dos séculos VIII e IX, que opõem à imagem o símbolo sem figura ou ação, uma cruz, ou como o ácido São Bernardo de Claraval que a expulsa do templo para que o fiel não se distraia de Deus: Luiz Bhittencourt figura o sagrado como cruzamento do Livro e da vida.

Referindo-se ao conjunto da obra do artista nos seus 15 anos de carreira.